Thursday, October 19, 2006

O assassinato da palavra - uma novela policial

O homem assassinou a palavra. Sozinho e ébrio, no meio da noite, decidiu de uma vez acabar com aquilo que lhe travava a garganta. O gosto amargo da letra-fel ainda era uma lembrança viva.
Esfaqueou a sangue frio a palavra. Letra por letra, sílaba por sílaba e, em um gesto de cólera e graça, assassinou a palavra num vão da sala pouco iluminado.
Na manhã seguinte, jornais locais anunciavam o fato com estranha satisfação. A palavra incomodava, tinha muitos inimigos, dizia o editor do caderno em aálise refinada. O assassinato aumentou as vendas do diário.
O delegado, minucioso, atentava-se aos detalhes. Ele: Gordo, careca, lenço na testa a enxugar o suor que escorria viscoso disse ser serviço de profissional. "Utilizou um objeto perfuro-cortante de maneira precisa e cirurgica, atingindo pontos lexicais-vitais".
O assassino ainda levou a palavra ao banheiro e, antes de jogá-la no vaso e dar descarga, lambeu o sumo, misto de êxtase e medo. Na sala, apenas o rastro das consoantes desconjuntadas. O assassino não deixou pistas.
Chamaram à cena D. Leopoldina, antiga professora de gramática do colégio Santo Agostinho e profunda conhecedora da palavra. A senhora idosa, de saia marrom até os tornozelos, disse ser uma palavra de grande estima e que faria muita falta. Saiu aos prantos, causando comoção nos presentes.
A população achou coisa normal. Logo inventavam uma palavra substituta e ninguem mais se lembrava da antiga, diziam as bocas pelos botecos.
Pobre do Sr. José, que havia escolhido a palavra assassinada para estampar o letreiro de sua loja de discos antigos. Foi obrigado a manter a loja sem nome mesmo, o que acabou por se tornar um nome até mais sugestivo.
Em um canto esuqecido da cidade, refastelado, o assassino analisava conjunções. Sonhador, já se preparava para o próximo crime, comprovando as suspeitas do delegado: Tratava-se de um Serial Killer.

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